Janja fala sobre o look da posse, seu interesse pela moda, rebate críticas e diz: "Não precisam me chamar de primeira-dama" (2024)

Em uma reunião de trabalho do grupo de Direitos Humanos do Governo de Transição, em Brasília, em meados de dezembro, a deputada gaúcha Maria do Rosário mencionou diversas vezes a presença de Janja, uma das organizadoras do encontro. Sempre que se referia à esposa do presidente, chamava-a de primeira-dama, até que foi interrompida pela própria. “Não precisam me chamar de primeira-dama, me chamem de Janja mesmo”, pontuou a socióloga, que já andava incomodada com o título que lhe cabe a partir deste 1° de janeiro. “Primeira-dama é o quê? Dama? É uma coisa tão patriarcal”, me disse Janja no dia seguinte à reunião em um almoço em São Paulo. “Já quebrei a cabeça tentando encontrar um substituto. Já me chamaram de primeira companheira, que também não gosto. Companheira é uma coisa muito do PT. Sou a Janja.”

Mulher mais influente da política brasileira hoje, Rosângela Silva, a Janja, quer quebrar protocolos. É uma mudança de postura que deixa para trás o caráter decorativo do título em uma transformação que vem embalada nas discussões de gênero e liderança feminina que passaram a ecoar no mundo todo na última década – e que ainda não tinham escalado para as mulheres dos presidentes no Brasil.

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Os looks das primeiras-damas em posses e eventos oficiais

Antes mesmo do início oficial do governo, Janja pautou a política brasileira como nenhuma primeira-dama o fez. Na campanha, aliou-se a influenciadores e artistas, deixando a comunicação de Lula com os eleitores mais pop e contemporânea. Também ajudou a costurar alianças políticas que culminaram na vitória dele. Foi ela quem ligou para Simone Tebet convidando-a para integrar a frente ampla. Durante a montagem dos quadros do governo, sugeriu nomes para o alto escalão dos ministérios e pautas que deveriam ser tratadas por eles. “A saúde pública precisa olhar mais para as mulheres na menopausa. É uma coisa que preciso falar com o [Alexandre] Padilha”, me disse, ao lembrar a severidade dos sintomas que enfrentou no período.

Ao transcender o papel tradicional atribuído às esposas de presidentes no Brasil, Janja gerou incômodos e virou alvo de críticas que chegaram a ataques machistas. Houve quem dissesse publicamente que ela deveria limitar sua atuação ao ambiente doméstico, com seu marido. A liderança exercida por ela gerou ressalvas dentro do próprio PT, inclusive. As críticas, no entanto, parecem não intimidar a socióloga. “Sou deste jeito: muito expansiva. Converso, canto, danço sozinha em casa. Não vou ser diferente porque tenho que ser a mulher certinha do presidente da República. Tenho uma história de vida que me dá condições para discutir algumas coisas”, afirma. “Se tem pessoas que acham que eu não estou no meu lugar, ok, não tem problema. Podem fazer críticas. O que precisa ter é diálogo e respeito com quem pensa diferente”, afirma. “Mas se você não me convenceu, vou continuar agindo do jeito que acredito”, diz. Além disso: “Em primeiro lugar, quem decide o que, como e com quem eu falo sou eu. Em segundo lugar vem a pessoa que poderia ser atingida por isso, que é meu marido. Ele me dá total liberdade. Sei muito bem quais são os meus limites”. Sobre os ataques públicos que recebeu, é categórica: “Não guardo mágoa, eu guardo print”.

Outra atitude inédita de Janja como primeira-dama é o interesse pela moda nacional. Ela sabe que, com sua visibilidade, pode atrair holofotes para o setor. No seu casamento, usou um vestido desenhado por Helô Rocha feito com bordados das mulheres de Timbaúba dos Batistas, na região do Seridó, no Rio Grande do Norte. Helô também está por trás do look usado na posse. “Queria vestir algo que tivesse simbolismo para o Brasil, para os estilistas, para as cooperativas e e para as mulheres brasileiras”, disse. Na entrevista para o Fantástico, vestiu uma camisa de seda brasileira branca com estampas vermelhas que remetem à cor do tingimento do pau-brasil, desenhada pelo estilista Airon Martin, da Misci. A camisa esgotou depois do programa. “Fiz questão de usá-la porque carregava um simbolismo, tanto da história de vida do estilista como da cultura popular, da produção da seda nacional, que é usada na França e a gente nem sabe.” Janja também vestiu blazer e saia da marca na diplomação do presidente, no dia 12 de dezembro, em Brasília.

Uma segunda marca independente brasileira caiu no gosto da socióloga. Trata-se da paulistana Neriage, das sócias Rafaella Caniello e Laura Cerqueira Leite. Janja usou uma saia plissada vermelha em visita ao presidente de Portugal, em novembro, e uma camisa também na cerimônia de diplomação. “A moda não é só um aspecto muito importante da cultura brasileira como é um motor da economia”, afirma. “Estou conhecendo mais sobre esse assunto. Tenho conversado com estilistas, aprendido bastante”, diz. “Quero carregar os estilistas brasileiros aonde for. Mostrar para o mundo, abrir portas de comércio, de oportunidades. Se puder contribuir, vou ajudar.”

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A consultoria de moda de Janja tem sido exercida pela amiga Alessandra Gaspar Costa, vizinha de bairro do casal petista em São Paulo e mulher do advogado Marco Aurélio de Carvalho, próximo a Lula. Juntas percorreram a Rua Mateus Grou em São Paulo, um corredor da moda nacional independente onde ficam as lojas da Misci, Neriage, Isaac Silva, entre outras. Para este ensaio, Janja pediu que Vogue usasse apenas estilistas brasileiros. Para vesti-la, selecionamos apenas roupas e acessórios desenhados por mulheres.

Na maior parte de suas aparições públicas durante a campanha, Janja vestiu camisetas com símbolos ou dizeres políticos, calça jeans e tênis. “Uso tênis com calça, saia, shorts. Outro dia, cheguei ao CCBB para uma reunião e estavam todas as secretárias de salto alto. Levantei o pé, mostrei o tênis e disse: Está instaurada a democracia do tênis.” Por outro lado, incomoda-se quando limitam o estereótipo petista ao visual despojado. “Outro dia, na TV, alguém disse que a Dona Lu [casada com o vice-presidente, Geraldo Alckmin], que sempre foi do terninho Chanel, estava tão petista que até jeans e tênis estava usando. Gente, é uma construção idiota. A pessoa tem que se vestir como se sente bem. E saber como e para que está vestida. Obviamente que não vou de jeans e tênis em uma recepção com presidentes. A relação com a moda pode ser mais desapegada de protocolos. Não é porque você é deputada que precisa estar de terninho e saia. Ou se você é mulher do presidente tem que usar vestido abaixo do joelho, careta.”

Se na vida pública, o Brasil já percebe que Janja não vai se dobrar ao que não acredita, o mesmo acontece na vida privada. Já disse que repreende o marido quando ele tem atitudes machistas, por exemplo. “São pequenas bobagens que ele acaba fazendo dentro de casa, mas, para um homem de 77 anos vindo da estrutura machista, é difícil de desconstruir. Se eu preciso de alguma coisa, levanto e pego, não peço para ninguém. Às vezes, ele diz: Amor, pega uma coisa para mim. Eu respondo: Você tem duas mãos. Tem nove dedos, mas tem duas mãos. Dá para pegar”, diz, aos risos.

Janja filiou-se ao PT aos 17 anos. Conheceu Lula em eventos do partido, mas não eram próximos. Foi em um jogo de futebol de uma confraternização de Natal no interior de São Paulo, em 2017, que a intimidade aumentou. “Eu tinha ido para ver o Chico [Buarque]. Ele [Lula] pediu meu telefone e me mandou uma mensagem”, contou Janja. A mensagem e as ligações que se seguiram foram feitas pelo celular do fotógrafo e amigo de Lula, Ricardo Stuckert, uma vez que o presidente não tem celular. “Foi ele quem fez a ligação. Nos encontramos algumas vezes, claro que com dificuldade porque não podia ser em espaço público. Começamos a conversar, viajamos juntos. Quatro meses depois, ele foi preso”, disse. “É um amor construído em 580 dias de prisão através de cartas”, completou. Nas correspondências trocadas diariamente por meio dos advogados – na época, Janja morava em Curitiba com a mãe, Vani –, reviam mensagens de dor e de esperança. O romantismo se concentrava, também, nas menções de ambos à lua cheia, até hoje um símbolo para o casal. “Era algo que nos unia. Toda vez que tem lua cheia, a gente fica ligado.”

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Quando Lula saiu da prisão, Janja estava na porta. Decidiu então fechar o apartamento onde morava em Curitiba e mudou-se para São Bernardo para viver com o noivo. Até a posse, o casal viveu em uma casa no bairro do Alto de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, acompanhado dos cachorros Resistência (uma vira-lata adotada durante a vigília) e Paris. Antes da campanha, nos fins de semana, gostavam de assistir ao futebol juntos. Ela gosta de ver séries e filmes, mas nem sempre ele a acompanha. Lula acorda todos os dias cedo para malhar, hábito que ela deixou de lado desde que se mudou para São Paulo. “Eu era muito marombeira. Quando morava no Rio, fazia musculação, pilates e funcional na areia da praia. Às vezes, os três no mesmo dia. Vou voltar. Uma mulher na menopausa precisa fazer ginástica. Não por causa de estética. O exercício me deu equilíbrio.”

Aos 56 anos, Janja diz que não tem mais medo de envelhecer. O que a assusta, na verdade, é a doença de Alzheimer, que acometeu sua mãe, Vani, de quem ela cuidou até o fim da vida. Quando se estabeleceu em São Bernardo, a filha trouxe a mãe para morar com ela e Lula. Dona Vani morreu em 2020, vítima do coronavírus, e é a grande referência feminina da socióloga. “O principal valor que ela me ensinou foi coragem”, disse. “Ela veio de uma família dissolvida por uma tragédia. Minha avó morreu muito cedo e deixou cinco filhas que foram para adoção. Minha mãe foi entregue para uma família não para ser cuidada, mas para trabalhar como doméstica. Desde muito pequena, ela cuidava de uma casa. Sabia ler, mas escrevia mal. Eu me dediquei a dar uma vida confortável para ela. Quando consegui comprar uma casa, comprei uma para ela.”

Embora seu irmão e pai ainda sejam vivos, Janja me disse que sua família era composta por ela e pela mãe e que os amigos ocuparam esse espaço em sua vida. Entre eles, Neudicléia Neres de Oliveira, a Neudi, que hoje atua como sua assessora. Elas se conheceram no acampamento de vigília nas redondezas do prédio da Polícia Federal onde Lula ficou preso, em Curitiba. “É mais que uma amiga. É uma filha do coração”, diz a socióloga.

Janja preferiu que a entrevista acontecesse na hora do almoço, em minha casa, próxima à dela, em São Paulo. Vestida em um macacão azul-marinho liso, sandália de salto alto branca e os óculos de aro grosso que se tornaram sua marca registrada, falou das férias da infância que passava na casa da tia na Zona Leste de São Paulo – a única irmã que a mãe conseguiu reencontrar. Disse que não gosta do gosto e do cheiro de ovo, que aprendeu a tomar uma cervejinha com a mãe e que dorme de meia mesmo em um calor de 40 graus. “Quando apago a luz do quarto e me mexo, ele logo fala, tá colocando a meia, né?”, contou bem-humorada.

Em 2023, Janja deve ocupar uma sala no mesmo andar que o seu marido no Palácio do Planalto. “Estava sentindo falta desse agito”, disse. Ela pretende levar as pautas que tratou na vida profissional para o governo, como as questões ligadas aos direitos das mulheres, o enfrentamento à violência contra crianças, a segurança alimentar e a sustentabilidade. “Eu não vou ser a mulher que vai ficar em casa enquanto o marido sai para trabalhar. Vou com ele”, afirma. “Posso ajudar a construir uma grande teia para que esses temas ganhem visibilidade.”

A polarização e o discurso de ódio são outros temas que estão no radar de Janja. “A ascensão da extrema-direita fascista não é um problema só do Brasil. O mundo inteiro precisa discutir uma organização das redes sociais. A União Europeia já está fazendo isso.” Ela sabe que precisa abrir um diálogo com a parcela da população que rejeita Lula, inclusive a que contestou o resultado das eleições. Diante das ameaças contra seu marido, Janja é superprotetora. “A vida dele é o que mais importa. Sou a chata da segurança, meto o bedelho. Se alguém tiver que tomar uma facada ou um tiro, sou eu.”

Mesmo quando não há sinal de perigo, ela age como escudo. “Para sair dos eventos, a gente tem uma tática. Ele abraça minha cintura para não ser puxado pelo braço e vou na frente abrindo caminhos.” Abrir caminhos é um ponto importante para Janja. Ela, que não pretende ter um cargo formal no governo, acredita que sua maior contribuição é “ir a lugares onde ele [Lula] não consegue ir, pisar em territórios onde ele não consegue pisar”. E que nenhuma outra primeira-dama foi ou pisou.

Leia o texto na íntegra na edição de janeiro da Vogue. Dia 06, nas bancas.

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